quinta-feira, março 27, 2003




Publicado na secção Espaço Público - Cartas ao Director




Tudo o Que É Sólido


Público, Quinta-feira, 27 de Março de 2003

1. Das imagens mais brutais que esta guerra até agora exibiu não se contam os corpos destroçados ou as crianças nas vascas dos hospitais, nem sequer o enfermeiro que manipula corpos como num talho, ou "marines" que exteriorizam o gáudio de um "rocket" sem espinhas no alvo como num jogo de basebal. As mais brutais são as menos sensacionalistas, porque as menos gastas. A imagem de um pai negro (e a sua cor também é aqui importante) falando para as câmaras e em especial para o Presidente Bush, com um discurso pungente e revoltado, e mostrando a fotografia do único filho, agora morto, não necessita de tradução automática nem de mais nada que fale por ela. Não há mediatização possível entre aquela dor e a nossa compreensão. Somos imediatamente fiéis ao processo de devoração das emoções. Esta nossa fidelidade é aquilo que de nós faz humanos, incapazes de sair dali intocados, como se nada se passasse.

Aqueles que defendem as guerras (não me refiro ao direito de defesa dos povos) esquecem-se sempre de que ela caminha em todas as direcções e de que a dor tem razões que a razão desconhece. A que pai se pode dizer que a morte do filho não foi em vão? Quem pode, com sentido moral, legitimar a morte dos outros, seja por que motivo nobre for?

2. A contra-informação faz milagres: já não se pode acreditar em nada. Se a "coligação" refere 12 baixas e os iraquianos apontam 25 homens abatidos, somos obrigados a fazer a média. A guerra é uma mentira. A fiabilidade dos jornalistas é relativíssima, porquanto fazem o jogo de uns, quando não fazem o seu próprio jogo. Não há códigos de ética que não sejam aviltados. Os ministros de informação de ambos os lados mentem com quantos dentes têm na boca. Nesta guerra virtual, as imagens que um lado veicula o outro lado esconde ou vela. A opinião pública, juiz das democracias, quer-se tranquila, serena como o povo. Longe da vista...

3. As manifestações antiguerra roçam o ridículo. Além de sabermos que a opinião pública tem um papel inócuo no meio disto tudo, na maior parte dos casos, percebe-se que as pessoas se manifestam para aliviar a consciência. A guerra tornou-se o pretexto para uma encenação mais ou menos elaborada de "bons" sentimentos humanos: a todo o custo se ouvem vozes clamando por justiça, liberdade, fraternidade. Mas estas palavras têm data e hora marcada, e desconhecem a espontaneidade. Depois da festa, quase sempre muito embandeirada, uma certa esquerda festiva, não esquecendo os pacifistas espúrios do folclore urbano, apressa-se a desmobilizar. Dizer-se contra a guerra é uma moda que justifica até uma prisão honrosa numa qualquer esquadra. Para mais tarde contar aos netos. Será possível uma manifestação sem tanto espalhafato?

4. Alguém disse que a paz na Europa é um luxo à custa da NATO, ou pelo menos da presença militar americana extramuros. Resta à Europa constituir a sua própria defesa, nunca baseada em princípios hegemónicos ou neocolonizadores. Se é preciso dizer aos americanos que não precisamos deles, façamo-lo de uma vez por todas. Ainda que isso possa comportar riscos em algumas regiões que se apressem a reatar atritos. As relações de dependência criam um insustentável comodismo que tem os seus custos: a cobrança. Que têm feito os EUA, o novo César Augusto, senão cobrar-nos com a sua arrogância a protecção sólida que nos servem? A Europa não pode apenas ser séria: tem mesmo de mostrá-lo. Mesmo que não queira ser a mulher de César. Para também poder dizer, como Marshall Berman, que tudo o que é sólido se dissolve no ar.

5. Dos pecados capitais e dos mandamentos da lei de Deus tentou-se redimir o homicídio, mas não há magia que tire os pecados do mundo. Os muçulmanos, como alerta Frei Bento Domingues (PÚBLICO, 23-03-03), também têm o direito de reivindicar a sua parte de Jesus. E antes de se atacar o Iraque, ninguém se preocupou em saber a identidade do alvo: cultura, tradição, civilização. Antes do petróleo e da água, não haverá um ataque a um mundo civilizacional? Por que "burqa" espreitará o nosso olhar?

Mas esse é o problema da escrita na água e de tudo o que é sólido.

António Jacinto Pascoal

Arronches




salamandrine 13:56



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